“O crossdressing invadiu a sala de estar dos brasileiros”

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A BBMag entrevistou uma crossdresser brasileira justamente no momento em que o País começa a entender um pouco mais este comportamento de gênero.

Até 2015, poucos brasileiros sabiam o que era crossdresser. Poucos, os mais bem informados, já sabiam que, em 2009, Laerte, importante, notável e premiado cartunista, com mais de 30 anos de carreira em quadrinhos, caricaturas, tirinhas de jornal e obras correlatas, havia se apresentado à mídia como Sônia e, desde então, passou a vestir-se diariamente com roupas femininas. Ciente de sua importância no cenário artístico e por ser pessoa notória, com alguma fama, ela encarou o desafio de se mostrar, autêntica e feliz, em sua condição de gênero. E ouviu críticas e mais críticas. Acharam que era uma mania, algo passageiro e que tal cartunista estava apenas pirando um pouco. Na verdade, ninguém deu muita bola…

Este ano, a novela do horário nobre da TV brasileira, que passa no canal com a mais imponente audiência do País, colocou uma personagem crossdresser na trama. Detalhe: sem caricaturismos, sem preconceitos, como um autêntico anti-herói. Ainda rústica! Mas com um dilema positivista e didático.

A BBMag procurou uma crossdresser de São Paulo para comentar essa “novidade”, essa possível vitória para todas aquelas que pessoas que vivem na mesma condição de gênero. Com vocês, a pequena e espevitada Flávia Schütz!

BBMag – Flávia, tudo bom? Por favor, comece contando rapidamente um pouco da sua história, de uma maneira reduzida, em flashes. É possível?

Flávia Schütz – Olá, tudo bem. Olha, quando eu começo a falar sobre isso, vou longe. Mas vou tentar ser objetiva (risos). Eu me reconheci crossdresser (embora ainda nem soubesse o que era isso) com 6 anos. Lembro de ter ficado admirado com a roupa da professorinha do pré-primário. Depois, com 10, vi um maiô vermelho da minha irmã no varal de casa e morri de vontade de experimentá-lo. Enfim, tenho flashes de momentos assim. Fui adolescente em uma época que tinha David Bowie, Madonna, Michael Jackson, Bob Smith (do The Cure), Boy George, Kiss, Queen, Rolling Stones… Tantos artistas e ídolos que usavam roupas e maquiagens diferentes. Por que eu não poderia? Aos poucos, e bem clandestinamente – aliás, sempre clandestinamente -, fui provando roupas femininas, sapatos, maquiagens, até que a Flávia se materializou…

BBMag – Se materializou significa que “saiu do armário”, é isso?

Flávia Schütz – Não! Aliás, não existe ‘sair do armário’ para crossdressers. O crossdresser não vive sem o seu armário (risos). E por conceito. Quando uma pessoa é crossdresser, isso significa que ela apenas gosta de usar a roupa do sexo oposto, porque isso a diverte, como um hobby qualquer. Tem gente que gosta de empinar aviões, outros de tocar instrumentos. O crossdresser é, ao menos pra mim, um hobby, uma diversão. De modo algum eu rejeito a minha condição masculina, a minha vida de homem, de pai, de profissional, os meus amigos… Eu sou feliz com tudo isso! Adoro jogar futebol e acompanhar os campeonatos, assisto Fórmula 1 e AMO mulheres! A vida toda só me relacionei exclusivamente com mulheres. Por isso é tão complicado entender o conceito.

 BBMag – Então o crossdresser não é a fase inicial do travestismo? Todo crossdresser não é gay?

Flávia Schütz – Vou te devolver essas perguntas com outra: um cara que nasce branco está na ‘fase inicial’ de ser um moreno, ou mesmo um negro? Não, né? Você é aquilo que você nasce. O travesti nasceu travesti. O transsexual nasceu no corpo errado, desde sempre. Ninguém muda ou vira outra coisa. Eu sou homem heterossexual e sou muito feliz sendo. Apenas me divirto com roupas femininas. É só e apenas isso! Quando me produzo e me olho no espelho, o que vejo e o que me encanta é uma figura que, esteticamente, é feminina! Costumo brincar que ‘sou lésbica’! (risos)

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BBMag – Mas o Laerte, ou a Sônia, melhor dizendo, é bissexual…

Flávia Schütz – É! Lógico! Porque ser crossdresser, que é uma condição de gênero, não define a orientação sexual. Existem crossdressers heterossexuais (que são a maioria, justamente porque a crossdresser não rejeita a sua masculinidade), homossexuais, bissexuais, panssexuais, enfim. Mas isso é orientação. Não se deve confundir a orientação com o gênero. Em gênero, você pode ser homem, mulher, drag queen, travesti, transsexual ou crossdresser.

BBMag – E quais as diferenças, por exemplo, entre as crossdressers e travestis e drag queens?

Flávia Schütz – As drag queens, independentemente da orientação sexual, são excelentes artistas, que montam versões exageradas, coloridas, espalhafatosas e, por vezes, caricatas do que é uma mulher. As travestis, também independentemente da orientação, embora não rejeitem seu órgão sexual, queriam ser mulheres. Para isso, elas se hormonizam e injetam silicone drasticamente, para que possam viver 24 horas com o aspecto feminino. Já as crossdressers elas querem ser… invisíveis! Elas se montam – repito: por diversão – para tentar não serem reconhecidas. O sonho de uma cross é ser vista na rua, ou no shopping, e você olhar e pensar ‘Ali vai uma mulher’, em vez de ‘Nossa! Olha! Ali tem um homem com roupas de mulher!’ Para conseguir se aproximar desse sonho, a cross se veste discretamente, usa roupas femininas normais, chics e elegantes, iguais a que qualquer mulher usa no dia a dia, faz uma maquiagem normal… Nós não usamos as roupas que as mulheres usam para ir em uma festa à fanstasia! (risos)

BBMag – E você sai na rua, vai ao shopping vestida assim?

Flávia Schütz – Quem me dera! Seria um sonho. Eu me visto assim só em casa mesmo, para fotos. E sempre desejando e tentando que a foto me engane. Que ela me mostre uma imagem de uma mulher mesmo. O mundo ideal para mim seria aquele no qual os armários fossem unificados, sem sexo. Nada de camisa feminina, camisa masculina; calça feminina, calça masculina. Cada um, dentro do limite do bom senso, poderia usar o que quisesse. Por exemplo: o bom senso diz que você não deve ir ao fórum ou à igreja de biquíni, certo? Nem deve jogar futebol de terno, sapato oxford e gravata. É isso, use o bom senso e vista o que quiser. E, por favor, seja criativo, aproveite a variedade de opções e vista-se bem! (risos)

BBMag – Mas, então, se você não sai e só se monta em casa para fotos… Como isso pode ser bom, ou legal? Não é sem graça?

Flávia Schütz – A montagem da persona Flávia é um processo. Tem os seus truques. Crossdressing não é meramente vestir uma saia ou um salto alto. É mais do que isso. É preciso envolver uma atitude e praticamente todos os sentidos. A situação ideal envolve um bom banho, seguido de perfume feminino. Nem precisa ser um adocicado, mas deve ser claramente uma fragrância feminina. Você deve manter a iluminação da casa à meia-luz, com luzes indiretas, de maneira que este ‘quase breu’ engane a sua visão e elimine traços de imperfeição da persona. É preciso beber um pouquinho de álcool para dar leveza e desinibição. Eu gosto de whisky e, às vezes, de vinho. O vinho é legal, porque até a cor dele e o desenho da taça têm seus charmes mais femininos. Para provocar a audição, uma boa e suave música. Pode ser um Jazz, um Blues… Eu curto muito a Nina Simone, mas Adele, Amy Winehouse, Lana Del Rey, ou ainda a boa e indefectível Madonna são implacáveis com a alma feminina. Não tudo da Madonna. Mas algumas canções melodiosas, como Vogue, Like A Prayer, enfim… Finalmente, o tato: este vem da própria roupa, do contato da meia de seda na perna, da lycra, da seda e até da ‘dor-feliz’ do salto alto… Inebriado de fantasia, de paixão pela ‘obra-prima’, pela criação. Esta, sim, é uma experiência completa, que elimina a necessidade de sair, de ver e ser vista. No fundo, no fundo, neste aspecto eu me basto (risos)!

Valkiria

BBMag – E o que você achou da exposição do Laerte e, mais recentemente, da personagem Valkiria, interpretada pelo ator Otávio Muller, na novela O Jogo do Poder?

Flávia Schütz – É… O crossdressing invadiu a sala de estar dos brasileiros! É óbvio que ambos casos foram boas exposições, positivas para o crossdressing, até para que haja um maior entendimento das diferenças entre gênero e orientação sexual. Isso deve ajudar, a longo prazo, a mulheres, esposas, noivas e namoradas a compreenderem os seus parceiros. Elas que, por desconhecimento, acham que, “Ah, se você usa saia, batom e salto alto, então, é gay”, vão descobrir que não. Não é! Ou não necessariamente. Aliás, é preciso ser muito macho para sair na rua de salto alto e minissaia (risos). Chego a pensar no dia em que uma namorada vai dizer para o namorado a frase ‘Nossa, que legal! Você ficou uma mulher linda. Agora entendi porque gosta de usar as minhas roupas’! (risos)

Emilia ClarkeEmilia Clarke

BBMag – Verdade… E me diz uma coisa: você já esteve em Londres? Acredita que se vivesse em Londres poderia se expor mais?

Flávia Schütz – Eu, Flávia, não. Mas o meu lado ‘sapo’ (como chamamos a nossa versão original, masculina, antes de subirmos no salto, rsrs) já esteve algumas vezes e, definitivamente, Londres é a minha cara, a minha terra, o meu lugar. Sem dúvidas! Cheguei a comprar roupas pra mim lá, coisas beeeemmm legais, diga-se. Com certeza, eu poderia ser mais feliz, mais eu, mais tranquila se vivesse em Londres. Além de ser uma cidade muito cosmopolita, é uma Torre de Babel, né? Em Piccadilly Circus, você passa pelas pessoas e não ouve duas vezes o mesmo idioma (risos). Se morasse lá, adoraria que fosse em Camden Town. Ali, sim, eu conseguiria ser eu mesma e ‘invisível’, como tanto sonho…

BBMag – Para concluir: você é feliz hoje sendo crossdresser?

Flávia Schütz – Lógico! Sempre fui. Se o crossdressing não me fizesse bem é que eu seria triste. Claro: tenho meus limites. Sei até onde posso ir e onde não posso. Curto a conta-gotas, do meu jeito, do meu estilo, devagarinho. E é natural que eu gostaria de poder vestir melhores roupas e sapatos, ou seja, dessas que são fabricadas para mulheres, no meu dia a dia. Que crossdresser não gostaria? E vou mais longe: um dia, uma cross disse em uma entrevista que se existisse um comprimido que a fizesse deixar de ser crossdresser, ela tomaria. Não porque é ruim, mas porque só nós sabemos a ansiedade que é comprar um sapato e só poder usá-lo em casa; comprar um batom da M.A.C. lindo e só usar em casa; ter de explicar milhares de vezes que não somos gay, com as pessoas te olhando com aquela cara de “Ahã, sei, sei…”. Isso é chato! Mulheres podem vestir quaisquer roupas nossas, mas não podemos vestir as delas. Isso é muito injusto. Mas eu sei que jamais deixarei de ser crossdresser. Nunca. Vou morrer assim. E feliz! Tomara que mais novelas tenham crossdressers em suas tramas (risos) e que, um dia, ninguém mais dê tanta bola para as roupas dos outros. Será que estarei viva para ver isso acontecer?

Sonia CateruniSonia Cateruni

Mais sobre o crossdresing

Estúdio de transformação em Londres: http://www.adamandeveuk.co.uk/

Filmes de temática crossdresser: Ed Wood, Tootsie, Glen or Glenda, Victor ou Victória, Uma Nova Amiga, A Garota Dinamarquesa (este é fantástico, mas a temática é transsexual, não crossdresser. Mesmo assim, crossdressers vão adorar.)

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Sobre o Colunista:

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