Cultura-Música: O som da periferia

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Cultura-Música: O som da periferia:

A nova leva de artistas tem provocado atualizações na gestão da carreira dos seus próprios mentores

Independência sempre foi um valor inerente à cena do rap brasileiro, que alcançou o seu público sem apoio da grande mídia ou da indústria fonográfica. Um dos maiores grupos, o Racionais MC’s, vendeu mais de um milhão de cópias do seu álbum Sobrevivendo no Inferno, produzido de maneira completamente independente.

 

As mudanças sociais da última década impactaram positivamente todo o funcionamento do rap brasileiro, desde a dinâmica do mercado até as formas de administração e organização. Da mesma forma que os rappers pioneiros influenciaram toda uma geração posterior, a nova leva de artistas tem provocado atualizações na gestão da carreira dos seus próprios mentores.

Influenciados pelo sucesso de empresas como o Laboratório Fantasma, de Emicida, o ConeCrew Diretoria ou a organização VVAR, rappers consolidados como o Racionais MC’s e Dexter (ex-509E) estabeleceram suas próprias agências para gerenciar os seus direitos, vender mercadorias e shows, e também para administrar as carreiras de outros artistas.

O acesso à tecnologia, a melhoria da condição financeira nos subúrbios e o declínio dos modelos convencionais de produção musical dominado pelas grandes gravadoras criaram um cenário favorável para o gênero, semelhante ao que ocorreu com o rap norte-americano nos anos 1990 com a ascensão de gravadoras como Death Row, No Limit e Roc-A-Fella.

Aliada a essa conjuntura, a nova MPB – Música Periférica Brasileira, conforme nomeia Sombra, ex-membro do grupo SNJ – encontrou um espaço aberto por fatores como a estagnação de outros gêneros como o rock e a MPB tradicional, ainda dominados por artistas mais velhos que alcançaram a fama entre os anos 1970 e 1990 e o momento atual do rádio, dominado pela música sertaneja.

O movimento hip hop, junto com o break dancing e o graffiti, chegou ao Brasil principalmente por São Paulo, apenas alguns anos após ter começado nos Estados Unidos na década de 1980. A onda começou com DJs locais e lojas de discos da Galeria do Rock, no centro da cidade, na época dividindo a área com o movimento punk, mas logo se mudando para a estação São Bento do metrô, onde dançarinos de break e rappers praticavam suas habilidades.

As primeiras gravações de rap brasileiro foram, em 1988, na compilação Hip Hop Cultura de Rua (Eldorado). A obra continha faixas de Thaíde e DJ Hum (produzidos por Nasi e André Jung, do grupo de rock Ira!), MC Jack, Código 13, entre outros. Houve algumas tentativas anteriores de incorporação do rap – como Kátia Flávia, gravada por Fausto Fawcett e Robôs Efêmeros. O scratch também havia sido usado em 1987 pela banda Gueto, de São Paulo, no seu álbum Estação Primavera.

Em 1988, a gravadora Zimbabwe lançou a compilação Consciência Black, que apresentou duas faixas dos Racionais MCs – Pânico na Zona Sul e Tempos Difíceis. No início dos anos 90, Thaíde, DJ Hum e os Racionais foram reconhecidos como os mais importantes nomes na cena de São Paulo, regularmente envolvidos em projetos sociais de promoção do movimento hip hop no Brasil.

Ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro, Gabriel Contino, conhecido como Gabriel O Pensador, fez sucesso em 1992 com a música Tô Feliz, Matei o Presidente, escrita sobre Fernando Collor, que havia acabado de renunciar à Presidência em meio a um processo de impeachment por corrupção. O hit foi seguido por Lôraburra e Retrato de um Playboy, que, apesar da sonoridade pop, apresentou forte letra de crítica a aspectos da cultura local.

Enquanto isso, o rap se espalhava pelo resto do Brasil com artistas como Câmbio Negro e GOG (de Brasília), Faces do Subúrbio, Chico Science e Sistema X (do Recife), Da Guedes e Piá (Porto Alegre) e Black Soul (Belo Horizonte). No fim da década, o rap fez as primeiras fusões com o rock através de grupos como o Planet Hemp (com Marcelo D2) e Pavilhão 9.

O ponto alto do movimento foi o lançamento de Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s, o grande clássico do rap brasileiro, que incluía a faixa Diário de um Detento. O sucesso do álbum abriu as portas para um movimento nacional do gênero, com grandes gravadoras contratando muitos dos nomes da cena local no final dos anos 90. Marcelo D2 lançou o seu primeiro álbum solo, Eu Tiro É Onda (1998), seguido de À Procura da Batida Perfeita, que mixou o rap com o samba. No Recife, a banda Faces do Subúrbio se concentrou na embolada, uma versão regional do rap. São Paulo, no entanto, continuou sendo o grande centro de produção de rap. De lá vieram nomes como DMN, De Menos Crime, Z’África Brasil, RZO, Criminal D, Mzuri Sana, 509-E, Somos Nós A Justiça, Detentos do Rap, Pepeu e Sabotage.

 

Mais recentemente, uma nova geração de rappers emergiu em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Paraná, Brasília, Bahia, Goiás, Pará, Rio Grande do Norte e Paraíba, mixando o hip hop com outros ritmos, gêneros e sons. O rap brasileiro agora abrange o jazz o samba, o funk, o soul, o forró, o repente, o reggae, a bossa nova, o brega e a música eletrônica. A participação de mulheres como Negra Li, Lurdez da Luz, Karol Conká, Lívia Cruz e Flora Matos abriu caminho para novas protagonistas e novas ideias.

Se entre os anos 1980 e 1990 o rap focava nas profundas desigualdades nacionais, a violência nas comunidades da periferia e no persistente racismo, a partir dos anos 2000 a ascensão econômica das classes mais baixas aprimorou o acesso à educação e à informação através da internet, trazendo novos temas e ideias para artistas como Parteum, Criolo, Rael, Flávio Renegado, Rashid, Don L, Amiri, O Quadro, ConeCrew Diretoria, Rincon Sapiência, Síntese, B, Negão, Emicida e outros.

A companhia dirigida pelos irmãos Evandro Fióti e Emicida desde 2008, Laboratório Fantasma, é um exemplo fundamental de como a distribuição de riqueza e poder – focada no topo da pirâmide (tanto na sociedade quanto na indústria de música local) – pode alcançar a periferia e possibilitar ao movimento rap ocupar novos espaços, se desenvolvendo não apenas como uma expressão cultural, mas como um modelo de negócio que gera emprego e renda para jovens das periferias.

A aparição do Emicida também foi um divisor de águas refrescante no cenário da música contemporânea. O paulistano foi um dos primeiros rappers a se livrar do peso estético e politico exercido pelos Racionais MC’s por mais de 20 anos. Seguindo a tendência, na edição de novembro de 2013 da revista Rolling Stone Brasil, os próprios Racionais apareceram vestindo modernas jaquetas e gravatas.

Em um país que se refere aos seus letristas como poetas e intelectuais, mas por mais libertadora que a mudança seja, para muitos ainda é um desafio aceitar que uma pobre criança negra da periferia esteja continuando uma linha que previamente pertenceu a Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso etc.

Além de tudo isso, Emicida tem protagonizado também a melhoria do padrão das produções profissionais para a indústria de rap local (muitas grandes faixas do passado foram realizadas com limitadas técnicas de gravação), assim como uma maior participação de músicos e performances, em vez de focar somente nos samples. O rapper tem se destacado ainda pela revolução na qualidade da produção de videoclipes. Tal fato tem sido facilitado, em grande medida, pelo patrocínio de grandes empresas, que têm aproveitado incentivos fiscais para investir em uma variedade de atividades culturais.

Certamente algum jovem diretor já deve estar pensando em um roteiro para levar a trajetória de Emicida para o cinema. Em 2007, o paulistano estava se apresentando para 50 pessoas em um clube local em Santo André. Em 2009 ele já tinha três indicações para o VMB – Brazilian Music Video Awards e, desde 2011, tem feito turnês pelos Estados Unidos e Europa, tendo se apresentado na Womex, em 2015.

Emicida emergiu da cena de rap de improviso do subúrbio de São Paulo e vendeu muitas fitas com suas próprias mãos antes de alcançar a fama. No ano passado, ele lançou o seu segundo álbum de estúdio: Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa.

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Sobre o Colunista:

David McLoughlin vive no Brasil há 20 anos, trabalhando na indústria da música local. Entre suas paixões estão cães e boas cervejas.